Todos os dias há novos sem-abrigo em Lisboa.

Ficou em casa sozinho, numa cadeira de rodas, e Vítor foi viver com ele. Cozinhava-lhe as refeições, levava-o à casa de banho, mas nem por isso ele deixava de o maltratar. “Batia-me, como se eu tivesse cinco anos. Ele ali, sem pernas, e eu com as mãos atrás das costas a gritar: ‘Se quiser dar, dê.’ Mas não ia bater no meu pai.”

Na véspera do exame final do curso, Vítor estava desesperado, a estudar, mas o pai insistia em tirar-lhe o computador, que queria usar para ver a Sport TV.

“Porque passas tanto tempo ao computador?”, perguntava o pai.

“Então, se fosse carpinteiro, precisava de martelo e pregos, como sou programador, preciso do computador. E tenho o exame amanhã.”

O pai não se importou, tirou-lhe o computador. “Ele, que quando eu tinha 12 anos me tirou da escola porque os meus testes não eram bons, agora, aos 45 anos, não me deixava fazer o último teste.”

Vítor ainda tentou, mas, segundo o professor, a resposta à pergunta mais importante estava incompleta. Reprovou, por meio valor.

Dias depois, aproveitando o momento em que o pai foi a um tratamento, no hospital dos Capuchos, Vítor saiu de casa e deixou a chave. “Agora, não sei como ele se safa. Se rasteja até à cozinha e à casa de banho. Nem quero saber. Toda a gente tem o que merece. Nem mais nem menos.”

Vítor é diabético, como o pai. Foi ao médico, que receitou uns comprimidos que deveria tomar sempre, mas não toma. “Deixavam-me com uma grande moca. Também tinha uma maquinazinha para controlar a insulina, mas perdi-a. Como um gajo anda sempre em mudanças… Às vezes, sinto-me um bocado esquisito. Mas pode ser da fraqueza. É raro tomar pequeno-almoço. Há muitos dias em que a primeira coisa que como é uma sopa do Exército de Salvação, às 7 da tarde.”

Outro problema é os dentes. Vítor conseguiu uma placa, da Segurança Social mediante um respeitável argumento: “Trabalho na restauração, o sorriso é fundamental.” Mas a placa rapidamente se partiu em três. Quando a levou ao técnico, ele foi claro: “Não pagou nada por esta placa, pois não? É que o material é fatela. Foi comprada nos chineses.”

João já teve quistos no cérebro. “Começava a ver tudo enevoado, e caía. Amigos levaram-me para o hospital, cheio de sangue. Fiquei internado dois anos.” Acredita que foi consequência dos comprimidos que lhe deram quando se queixou de sequelas psicológicas da Guerra Colonial.

Agora tem uma hérnia. No hospital, durante uma crise, disseram-lhe que tem de ser operado. Mas isso implica passar dois dias no hospital, perdendo o “salário” do parque de estacionamento.

“Só tens uma hipótese”, sugere Vítor. “Vais poupando, até teres o dinheiro de dois dias.”

Mas há o problema da grua. Pode chegar a qualquer momento. O prédio ao lado da Casa dos Bicos está em obras, e uma gigantesca grua vai ocupar a via pública, diz João. Isso significa que não haverá lugares de estacionamento e os dois sócios perderão o emprego.
João fala da grua como um monstro mitológico. Tudo nela é desmesurado e assustador. Vai ocupar todo o quarteirão, durante um ano e meio, pagando uma taxa de 15 mil euros por dia. “A grua vai chegar amanhã, já está aqui a polícia”, diz ele, todos os dias, num exercício de pensamento mágico.

Há uma estranha mas intensa apropriação dos espaços da cidade por quem vive na rua. Habitando a margem, eles são, de certa forma, os verdadeiros cidadãos. Vêem coisas que aos outros passam despercebidas.

Nas escadas da Sé, há duas semanas, João deparou-se com uma luz muito intensa, um círculo branco, a uns 200 metros de altitude. Girou no céu, em torno de outro círculo luminoso mais pequeno, antes de desaparecer. “Mas não acredito que sejam extraterrestres. Inclino-me mais para coisas de espionagem”, diz João.

Já Vítor acredita que as 100 ou 200 pequenas chapas metálicas que observou a voar em formação são manifestações de vida intergaláctica. “Os americanos há muito que viajam para outros planetas. Porque é que no Google Maps não se vê a área 51, em Roswell? Alguém esconde algo.”

Para Vítor, há outros mundos, acima e abaixo de nós. No fundo dos mares há uma civilização de sereias. Está provado. Foram encontrados esqueletos dentro de baleias. Crânios e membros no estômago de tubarões. “Os gajos das petrolíferas andam a mapear o fundo do oceano e divulgaram imagens de uma mão estranha colada à janela do submarino. A mão de um ser metade humano, metade peixe.”

Vítor passa horas na Internet à procura de coisas inexplicáveis. “Foi encontrado um martelo com 650 milhões de anos. Datado com Carbono 14. Há vestígios de sandálias com 300 milhões de anos.”

Tem um telemóvel sem saldo, mas com acesso à Internet, por wifi, num sistema que desenvolveu para acompanhar a vida do filho, através do Facebook.

Viu-o apenas uma vez, num funeral. “É um rapaz alto e magro, de óculos. Não tive coragem de lhe falar.” Pediu-lhe amizade no Facebook, mas ele nunca respondeu.

Quando a grua chegar, será preciso “fazerem-se à pista”. Vítor tenciona ocupar um pedaço de passeio do outro lado da rua. O plano de João é dedicar-se full time ao segundo emprego. A seu pedido, dei-lhe uma muleta que me sobrou de um entorse. Colocou-a a seu lado, na escadaria, para competir com a outra pedinte na corrida da desgraça. Mas desistiu. “Não sou capaz, não é honesto.”

Com o avanço do Inverno, Vítor apanhou um susto. A chuva e o vento provocaram a queda de um enorme pedregulho junto à entrada do seu refúgio. “E se eu fico lá dentro?”, pensou. E meteu-se a construir uma pequena casa com tábuas, do lado de fora do bunker.

A estrutura está periclitante, porque pregar pregos despertaria a curiosidade da vizinhança. As placas equilibram-se por um sistema de forças. Tudo está pensado com minúcia de engenheiro. A tábua superior, inclinada para que a água da chuva escorra, apoia-se num pacote de vinho tinto moldado na perfeição e fechado de forma a que a pressão do ar no interior produza um efeito de almofada, absorvendo as vibrações da estrutura.

A calafetagem é feita com sacos térmicos do Pingo Doce (“criei um efeito de estufa”) e todas as entradas de ar foram controladas colocando um cigarro aceso no meio do recinto, e registando as direcções em que o fumo se movimentava. “Assim posso dormir num ângulo desviado de todas as correntes de ar”, explica Vítor. Para garantir os banhos, meias garrafas de plástico foram espalhadas pela lixeira para captar água da chuva.

As condições melhoraram muito. A um canto da casa nova, Vítor colocou até um menino Jesus, um pequeno burro de barro e um galo de Barcelos — o seu presépio. Mas eu senti mais frio e desconforto do que na primeira visita.

Pousei um joelho na cama, deixei que a Crazy viesse brincar comigo na manta áspera e senti que a minha pesquisa da história de Vítor e João tinha chegado ao fim da linha, ao limite da minha utilidade como repórter. Agora que somos amigos, como posso viver com isto?