Sem-Abrigo. Quando Lisboa recolhe, as ruas nunca ficam vazias

Manel sofre de esquizofrenia. Quando a pandemia começou nem sabia o que estava a acontecer: “Não se via ninguém”. Luis saiu da prisão em abril. Foi para um hostel, onde nem sempre vai dormir.

“Quando dizem para irmos todos para casa, eu sei que não vou, porque eu não tenho casa”
“Nas ruas sente-se muita vulnerabilidade. Há medo e angústia”
“A pandemia veio fazer a Estratégia Nacional tremer”
O termómetro marca os 10 ºC e a chuva vai caindo numa Lisboa quase deserta, em mais uma noite de recolher obrigatório. Pouco passa das 23h e aos olhares menos atentos escapam as centenas de pessoas que se preparam para dormir nas ruas da capital. Como a “Princesa”, o Manuel e o Luís.

Há um ano, existiam cerca de 7100 pessoas sem-abrigo em Portugal continental, de acordo com um relatório da Estratégia Nacional para Integração de Pessoas em Situação de Sem-Abrigo (ENIPSSA). A Área Metropolitana de Lisboa concentrava 72% do total — mais de 3950 pessoas. Um ano (e uma pandemia) mais tarde, as associações de apoio garantem que há mais pessoas a dormir nas ruas, apesar de ainda não existirem dados oficiais.

O perfil mais comum é o de homens, adultos, com problemas de dependência ou de saúde mental, sem qualquer rendimento ou com trabalhos precários.

[Ouça aqui a reportagem da Rádio Observador sobre o impacto da pandemia nas pessoas sem-abrigo]

“Quando dizem para irmos todos para casa, eu sei que não vou, porque eu não tenho casa”
Uma das primeiras paragens desta volta noturna é o “sítio” de João Cipriano: um telheiro, entre prédios, perto do Areeiro. O homem, com mais de 60 anos, recebe-nos de sorriso aberto e sem máscara. Os seus últimos tempos na rua têm sido ainda mais difíceis do que antes. Não o esconde.

Quando dizem para irmos todos para casa, eu sei que não vou, porque eu não tenho casa. Venho para o meu sítio. E aos sábados e aos domingos é mau. É mau porque durante o dia não há movimento, não há gente… acabou. “

Cipriano pousa os pés descalços, no chão de pedra molhado, enquanto tenta encontrar alguma coisa para cobrir a boca e o nariz, mas não encontra. Para quem está em situação de sem-abrigo, as condições de segurança que a pandemia impõe são muitas vezes uma miragem, sobretudo o acesso a máscaras e desinfetantes.

“Faltavam 14 dias para acabar a minha pena. Eu fui preso por andar sem carta de condução, não foi cá nada de matar ou de roubar. Chamaram-me e disseram que podia sair. Cheguei cá fora e não havia ninguém nas ruas”
Luís

E não é assim apenas com ele. Manel sofre de esquizofrenia paranoide e vive na rua há vários anos; conta mesmo “que é dos mais antigos de Lisboa”. Nos últimos tempos tem dormido na escadaria da Igreja de Arroios e desabafa que nem sempre é fácil manter a distância. Apesar de tentarem ter cuidados, há comportamentos habituais que dificultam. “Apanhamos coisas da rua, fumamos beatas uns dos outros. Podemos apanhar o problema”. Quando a pandemia começou, em março, nem sequer percebeu o que estava a acontecer durante uns dias.

Não se via ninguém, toda a gente tinha medo uns dos outros. Depois começaram a aparecer pessoas de máscaras. O meu médico é que me deu umas luzes. Não estava a perceber ao certo o que estava a acontecer”.

Luís também está por Arroios. Saiu da prisão em abril, mesmo a meio do confinamento, confessa que a adaptação não foi fácil. “Faltavam 14 dias para acabar a minha pena. Chamaram-me e disseram que eu podia sair”. A Segurança Social encaminhou-o para um quarto, num hostel, em Lisboa, mas admite que, às vezes, não dorme lá, porque se sente desconfortável naquele ambiente. “Divido quarto com duas pessoas que estão muito nas drogas e eu ando a fugir disso”, diz.

A poucas centenas de metros, na Avenida Almirante Reis, as arcadas são teto de dezenas de pessoas. A maior parte são jovens, há menos tempo na rua do que quem vive por Arroios. Vários estão alheados, apesar de aceitarem falar. “Princesa” (como é conhecida) é uma das poucas mulheres que encontramos. Durante a conversa com o Observador, “Princesa” resguarda-se numa fortaleza de cartão, a olhar o vazio.

As pessoas estão carentes. Andamos mais afastados, queremos cumprir as regras. Uma grande diferença que vejo é mais crise na zona de Lisboa”

“Nas ruas sente-se muita vulnerabilidade. Há medo e angústia”
Celestino Cunha é um dos coordenadores da Comunidade Vida e Paz. Apesar de reconhecer que foram criadas muitas respostas de habitação, sobretudo pela autarquia, alerta que as equipas estão a encontrar mais pessoas na rua do que antes da pandemia.

Antes da pandemia estávamos a encontrar cerca de 420 pessoas todas as noites, em 100 locais da cidade. Atualmente, depois de muitas pessoas terem ido para centros de acolhimentos ou para outras respostas, estamos a encontrar 550 pessoas. Aqui pelo meio, chegaram muitas pessoas à rua”.

Uma das questões que mais preocupação tem trazido é a falta de máscaras. Celestino Cunha garante que, neste momento, “o acesso às máscaras e desinfetante não existe”. A autarquia está a disponibilizar estes equipamentos de proteção através das juntas de freguesia, mas este responsável da Comunidade Vida e Paz explica que “uma das caraterísticas das pessoas sem-abrigo é não procurarem as instituições para resolverem os problemas”.

Outro dos desafios é a falta de higiene nas ruas, agravado ainda mais pelo encerramento dos restaurantes, que muitas vezes permitiam o acesso a pessoas em situação de sem-abrigo. Até a lavagem frequente das mãos é uma dificuldade para quem passa os dias na rua.

Celestino Cunha contacta diariamente com quem vive na rua e garante que “estas pessoas estão a sentir muita vulnerabilidade”: “Há medo e angústia”, apesar de a maior parte disfarçar — “como tradicionalmente fazem, através de substâncias, ou criticando ou isolando-se”.

A Comunidade Vida e Paz nunca deixou de estar nas ruas, mesmo no início da pandemia, quando muitas organizações não se conseguiram manter. Mesmo assim, Celestino afirma que há um “apelo sistemático por parte de quem está sem-abrigo à continuidade do nosso trabalho”.

Houve organizações que no início da pandemia não conseguiram manter a atividade e há um certo medo que isso volte a acontecer. Estar na condição de sem abrigo é viver numa enorme angústia de vulnerabilidade e insegurança”. Dizem-nos muito que não lhes podemos faltar, querem garantir que não vamos deixar de vir”, afirma o responsável da Comunidade Vida e Paz

Quanto ao médio prazo e ao impacto que a pandemia pode ter na integração das pessoas sem-abrigo, Celestino Cunha não quer perder o otimismo e tem esperança que a pandemia “até acelere a resposta”. Apesar disso, não tem dúvidas que se avizinham tempos exigentes, porque o que está a ser criado neste momento é para quem já está em situação de fragilidade. “Aqueles que forem chegando por causa da crise, não sei… Vamos ter de assumir que precisamos de mais financiamento, mais respostas”.

“A pandemia veio fazer a Estratégia Nacional tremer”
Portugal tem uma Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo desde 2009. Mas, de acordo com um relatório divulgado pela Rede Europeia em Matéria de Política Social em 2019, pouco foi feito em 10 anos. No mesmo documento, 2017 é referido como um ponto de viragem nesta inércia.

Há três anos, foi aprovado um novo plano estratégico para integração de pessoas que não têm casa e, no final de 2019, Henrique Joaquim – antigo presidente da Comunidade Vida e Paz – foi nomeado gestor desta área, com o intuito de se criar uma maior proximidade entre os decisores e a realidade das ruas.

Os desafios das pessoas sem-abrigo têm sido também acompanhados pelo Presidente da República, que os traz para a agenda mediática. Antes da pandemia, Marcelo Rebelo de Sousa traçou como meta tirar todas as pessoas das ruas até 2023. Este verão recuou neste objetivo, afirmando que a crise inesperada podia alterar as previsões.

Em entrevista ao Observador, Henrique Joaquim não se mostra tão desanimado. “O horizonte temporal ainda é grande. Vamos continuar a executar o plano traçado, com ou sem pandemia”, garante o gestor da Estratégia Nacional.

A Covid-19 veio evidenciar os problemas das pessoas sem-abrigo, tal como de vários outros setores, mas para Henrique Joaquim esta realidade deve ser um incentivo na procura de mais respostas. “Vamos continuar a trabalhar em soluções de habitação e neste Orçamento do Estado para 2021 já está previsto o compromisso de retirar da rua mais 600 pessoas a nível nacional”.

Esta estratégia quer também garantir que para além do alojamento — que muitas vezes não é suficiente para retirar uma pessoa da situação de sem-abrigo — há um acompanhamento personalizado de cada cidadão: “Estamos a tentar que todos tenham um processo individual, adequado a cada um dos perfis. É uma meta que queremos alcançar em breve”.