Presidente do Conselho Europeu: “A bússola europeia não pode ser o PIB, tem de ser o bem-estar dos cidadãos”

O progresso da UE, defende, não pode ser medido apenas pelo crescimento económico: deve ter em conta, acima de tudo, o bem-estar dos cidadãos. ​Na véspera da sua viagem para o Porto, onde presidirá a uma Cimeira Social, as expectativas do presidente do Conselho Europeu não podiam ser mais elevadas.

Os líderes europeus aprovaram a declaração que instituiu o Pilar Europeu dos Direitos Sociais, em 2017, em Gotemburgo. O que é que podem fazer agora no Porto, além de uma outra declaração, tendo em conta que estas matérias são de competência nacional, e que os governos não estão dispostos a abdicar das suas prerrogativas na definição de políticas sociais?
A minha convicção é a seguinte: o Porto será um momento político importante, onde afirmaremos a nossa ambição social. A mensagem que queremos passar é que em tudo o que fazemos há sempre subjacente um objectivo social, porque a dignidade e o respeito por cada ser humano são os nossos valores fundamentais. Por isso, quer estejamos a trabalhar na recuperação da crise da covid-19, no combate às alterações climáticas, na agenda digital, no fortalecimento da educação ou no acesso à saúde, temos este objectivo. Espero que o Porto envie o sinal de que a bússola europeia é o bem-estar de cada cidadão.

Foi difícil, para si, negociar a Declaração do Porto com os Estados-membros? Foi na base do mínimo denominador comum? Não teme que este compromisso possa ser visto como inconsequente?
Talvez seja importante recordar que tomámos a decisão de realizar esta Cimeira Social do Porto, e começámos o processo de preparação da reunião antes de ter rebentado a crise da covid-19, porque já todos compreendíamos na UE que tínhamos que fixar esta direcção e dar este sinal. Lembro-me muito bem, alguns dias após a minha nomeação, quando me encontrei com o primeiro-ministro, António Costa, e discutimos a preparação da presidência portuguesa do Conselho da UE, decidimos que seria muito apropriado realizar esta cimeira para avaliar quais são os progressos alcançados alguns anos após Gotemburgo, e quais os próximos passos necessários para dar uma mensagem muito forte.

Quando iniciei as minhas consultas com os parceiros sociais, insisti muito nesta ideia de que precisamos de olhar para além do Produto Interno Bruto. O PIB é um indicador útil, é uma bússola interessante, mas não pode ser a única bússola. A bússola europeia deve ser o bem-estar dos nossos cidadãos.

Há uma cooperação saudável entre as várias instituições comunitárias, e também com os parceiros sociais, porque todos sentimos que precisamos de um novo tipo de paradigma económico e social, e de uma estratégia muito ambiciosa. Com a declaração política que os parceiros sociais vão fazer na conferência de alto nível, e a declaração que será feita pelos líderes, penso que todos verão que existe uma ampla convergência política. Claro que isso não significa que estejamos de acordo em tudo. Parlamento Europeu, parceiros sociais, chefes de Estado e Governo não estão exactamente sintonizados, existem diferenças, mas a direcção é a mesma.

Alguns líderes, tais como, por exemplo, a chanceler da Alemanha, Angela Merkel, e o primeiro-ministro holandês, Mark Rutte, não vão viajar para o Porto. Isso é sinal de que nem todos dão a mesma importância à política social?
Essa não é a minha interpretação. O que acontece é que ainda estamos a viver em circunstâncias extraordinárias por causa da covid-19, e em diferentes países existem diferentes sensibilidades por causa das restrições. Alguns líderes não estarão fisicamente no Porto, mas vão participar na cimeira por videoconferência.

Quando fala em usar outros indicadores para além do PIB como bússola, está a pensar em quais, exactamente? Como pretende medir o bem-estar dos cidadãos?
Há muitos critérios que podemos ter em consideração, o PIB incluído. O que eu pretendo é alimentar o debate, para podermos encontrar uma espécie de acordo entre os parceiros sociais, com o apoio dos líderes políticos, sobre um número limitado de critérios que devemos considerar como os mais importantes: não serão mil, mas talvez cinco, seis ou dez. Precisamos de algo que esteja relacionado com a educação, as competências, com a questão da inovação, que também é importante, a luta contra a pobreza, ou a discriminação… O importante é todos termos a mesma interpretação, o mesmo nível de compreensão, e o mesmo enquadramento para o debate democrático. Se todos tivermos a mesma bússola e a mesma ambição, então podemos, ano após ano, fazer a avaliação do nosso progresso, se foi suficiente ou se temos de reforçar os nossos esforços.

Esta é minha ideia. Mas, para além desta ideia, há a mensagem de que este projecto europeu é muito mais do que financeiro ou estritamente económico. Desde o início, o nosso objectivo foi muito claro: paz, prosperidade, estabilidade e dignidade. Para mim, esta palavra é importante: a dignidade de cada ser humano. Se este é o nosso objectivo comum, então precisamos de trabalhar a nível económico e a nível social.

Mas quando diz que o PIB não pode ser tão importante e que a UE deve ter outra bússola: esse argumento, utilizado por muitos partidos políticos europeus, não costuma colher grandes resultados nas eleições…
Deixe-me clarificar uma coisa: nunca direi que o PIB não é importante. É um factor muito importante. Mas não é o único. O meu ponto de vista é que devemos também ter em consideração outros critérios para ver se estamos a fazer progressos e a trabalhar na direcção certa para reforçar o nível de bem-estar europeu: o que estamos a fazer para combater as alterações climáticas, o que precisamos de fazer para melhorar o nível da educação, o acesso à saúde, por exemplo. Provavelmente, no passado, subestimámos a importância da saúde para a resiliência do nosso modelo económico e social.

Será possível passar a ter critérios vinculativos em matéria de política social, como existem, por exemplo, para a política económica?
Penso que é melhor não começar com uma abordagem vinculativa, para que todos possam ter o tempo de que necessitam para progredir. Quero mostrar respeito por todos os Estados-membros, porque é claro que as realidades, as opiniões e os debates políticos são distintos nos diferentes países. Mas como acontece em muitos assuntos, penso que, mas cedo ou mais tarde, serão dados passos no sentido de uma maior convergência. Por vezes, os Estados-membros precisam de tempo antes de serem capazes de pôr em prática.

A Alemanha está a fazer uma experiência com o rendimento básico universal. Essa poderia ser uma opção para o resto da UE?
Em vários países europeus, esse debate está a ter lugar, e em alguns existem experiências-piloto relacionadas com esta ideia. É uma responsabilidade essencialmente nacional, e não vou tomar partido, porque, dependendo de como este rendimento universal é implementado, podemos ter situações muito diferentes. Mas estou encantado por, em vários locais da Europa, intelectuais, líderes políticos, agentes económicos e agentes sociais estarem a liderar este debate. Uma das grandes questões relacionadas com o subsídio universal é bastante simples: ele substituiria pura e simplesmente os mecanismos de protecção social mais tradicionais que foram postos em prática após a Segunda Guerra Mundial, ou viria como um suplemento, sem se sobrepor totalmente aos modelos existentes? Esta pergunta mostra que existem questões legítimas sobre a forma como a sociedade está organizada, sobre a solidariedade entre gerações e entre cidadãos, e sobre como devemos ter em conta as novas formas de relações de trabalho.

E a proposta de um esquema europeu de resseguro de desemprego, vão discutir isso na cimeira?
Tenho a impressão de que essa questão será discutida durante a conferência de alto nível. Talvez também possa ser abordada durante o Conselho Europeu, mas não para uma decisão formal, apenas como uma oportunidade de trocar opiniões e ver como será possível construir compromissos. Certamente, a questão da convergência social fará parte do debate. Nas últimas décadas, tentámos melhorar a convergência económica e reforçar o mercado único. Só que, para isso, temos também de abordar a questão da convergência social, e é aí que entra o debate sobre o salário mínimo ou sobre o resseguro de desemprego. Não é simples porque, mais uma vez, não é uma competência europeia.