Rendas fazem disparar pedidos de habitação social.

31.651 famílias pedem casa à Câmara em Lisboa e Porto

Luís, 60 anos, vive há quatro no carro, em Cascais. A pensão de invalidez não chega para mais. Depois de um acidente, há 14 anos, foi sempre a cair. Cascais vai dar-lhe uma casa
A subida das rendas e do valor das habitações nas áreas metropolitanas fez disparar o número de famílias em risco habitacional. Até a classe média já procura ajuda e renda social. Mas só há casa para 1%

Primeiro veio o turismo e transformou, em Lisboa e no Porto, milhares de casas em alojamentos locais, hostels e hotéis. Depois vieram os residentes estrangeiros, de classe tão alta que até a Madonna se mudou, a enamorarem-se por Portugal e a valorizarem ainda mais o mercado da habitação — reabilitada, alugada e vendida a valores de luxo. Os vistos gold, atribuídos a cidadãos estrangeiros que investem pelo menos 500 mil euros em imobiliário, deram também o seu empurrão, engordando até esse valor imóveis pouco merecedores do preço. Pouco a pouco escassearam as casas acessíveis e nem mesmo quem já as tinha alugadas ficou sob teto seguro: os senhorios bateram-lhes à porta, ora porque venderam o imóvel, ora porque vai para obras, ora porque vão aumentar a renda para lá do suportável, e deram-lhes ordem de saída.
A crise da economia acabou mas não a da habitação. O consumo animou-se mas não há desafogo que aproxime o poder de compra da classe média e baixa dos valores imobiliários atuais praticados nas grandes cidades. As poucas moradas que estão no mercado não são para estas famílias, nem para comprar nem para arrendar, e afastam-nas para os concelhos vizinhos. Mas elas não vão sozinhas. Os aumentos seguem-nas, contaminando também as rendas dos arredores, devido ao aumento da procura. Os agregados com menos rendimentos aguentam até ao incumprimento, arriscam o despejo e, quando já não restam alternativas que possam pagar, vão, em desespero, pedir às câmaras uma casa com renda social, a única que podem suportar.
De acordo com os dados recolhidos pelo Expresso junto de 30 concelhos das Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto — só quatro não responderam —, disparou o número de famílias que procura na habitação social a última resposta, existindo atualmente 31.651 em lista de espera. Os novos sem-casa não são sem-abrigo, são maioritariamente famílias que se amontoam em quartos ou imóveis sem condições, que têm trabalho mas cujo rendimento é insuficiente para suportar os valores do mercado.
O aumento dos pedidos de casa municipal é generalizado e tornou-se especialmente notório a partir de 2017. A subida é tal que se aproxima dos valores atingidos nos anos da crise económica. O problema ganha ainda maior dimensão porque, desde então, o número de fogos sociais disponíveis diminuiu drasticamente: no imediato, só há 319 casas vagas, que permitem acolher apenas 1% das famílias inscritas em lista de espera. E sendo que a atribuição é feita com base numa classificação por pontos que soma critérios de risco, carência e exclusão — número de filhos, desemprego, rendimento, deficiências, problemas de saúde, casa degradada, ordem de despejo —, só os casos mais graves dos mais graves têm atualmente uma resposta. Luís, o homem de 60 anos da fotografia, está no topo de uma lista. Vive num carro sem matrícula numa rua sem nome. Não tem emprego. Tem muletas e 72,38% de incapacidade.
CONTAMINAÇÃO DO SUBÚRBIO
O problema é maior na área metropolitana da capital, que concentra 72% dos pedidos. Aqui, Lisboa, Sintra, Almada, Oeiras, Amadora e Cascais são os concelhos com números mais elevados, entre o recorde de 3484 famílias em espera em Lisboa e as 1884 no concelho de Cascais. Olhando para o mapa, o fenómeno do alastramento geográfico da crise imobiliária salta à vista. É como uma pinga de tinta da china que cai na capital e que daí irradia para os concelhos limítrofes, contaminando-os com a especulação. Os números descem à medida que os quilómetros aumentam em relação ao centro da capital: Vila Franca de Xira, Palmela, Montijo e Barreiro registam menores listas, abaixo do meio milhar. Alcochete, Mafra e Sesimbra não responderam ao Expresso. No Porto é igual, sendo que atualmente Maia e Gondomar têm já menor capacidade de resposta que a sede de distrito.
Nas questões enviadas a cada município foram pedidas as razões alegadas por quem pede casa e, um a um, confirmam o efeito da nova realidade do mercado imobiliário no tecido social. Só muda a designação: em Almada é a “falta de capacidade para suportar o valor das rendas praticadas no mercado”, em Cascais “o aumento das rendas”, no Montijo “os despejos em consequência da nova legislação”, em Odivelas a “renda elevada”, em Palmela os “valores no mercado geral de arrendamento”, no Seixal “as rendas e prestações em dívida”, em Setúbal “os despejos por iniciativa do senhorio por não renovar o contrato”. Amadora, Loures, Seixal, Sintra apontam a mesma causa.
A norte, no Grande Porto, o culpado não muda: atualmente é o arrendamento proibitivo que mais motiva as famílias a pedir ajuda habitacional às Câmaras de Arouca, Espinho, Maia, Matosinhos, Paredes, Porto, Póvoa de Varzim, São João da Madeira, Valongo e Gaia.
O preço médio de arrendamento de casas em Portugal aumentou 37% em 2018, fixando-se nos €1106. No mercado de compra e venda a subida foi de 25% e rondou os €247 mil, segundo dados do portal Imovirtual. Em Lisboa, a renda média chegou aos €1475 e o preço de venda atingiu os €330 mil. O INE pinta um cenário igualmente milionário: na capital, no Porto, Cascais e Oeiras, o valor das casas está mais de 50% acima da média nacional, na ordem (ou mesmo acima) dos €2 mil por metro quadrado. E a Confidencial Imobiliário (entidade privada que agrega as transações no mercado das casas) atesta que 2018 terminou com valores de venda 15,4% superiores ao ano anterior. No último Relatório de Estabilidade Financeira, o Banco de Portugal alertava para a taxa de poupança dos portugueses apresentar níveis historicamente baixos e a Deco voltou aos alertas de sobre-endividamento dos tempos da crise.
UM T0 ESTACIONADO NA RUA
Luís recebe €334 de pensão de incapacidade. Há 12 anos, a 27 de julho de 2007, um acidente de carro deixou-o três meses no hospital, um mês em cadeira de rodas e para sempre com mobilidade reduzida e incapaz de se manter como capataz de obras. Bateu num carro que se despistou por excesso de velocidade mas nunca conseguiu provar a culpa alheia. E perdeu tudo: o Volvo quase novo, o emprego, depois a casa, a seguir o casamento e a proximidade com as quatro filhas. Nunca recuperou. O subsídio tornou-se cada vez mais curto para pagar um teto. Foi descendo na escala habitacional até ao Renault azul, velho, incapaz de mais quilómetros. É o seu T0. A casa de banho fica na vivenda do vizinho Manuel.
“Infelizmente, acho que a situação do mercado imobiliário ainda vai piorar”, desabafa a vereadora da habitação de Almada. “Aqui, as rendas começaram a aumentar primeiro junto à praia, na Trafaria, mas agora a subida já chegou ao centro da cidade. Em zonas onde uma casa se alugava há um, dois anos por €350 agora aluga-se por cerca de €600. Deixou de haver soluções, por exemplo, para a comunidade imigrante”, explica. Teodolinda Silveira tem em mãos uma lista de espera de mais de 1700 pedidos de casa — 500 entraram no ano passado — mas atualmente não tem nenhuma para entregar.
A solução, diz, é diversificar as alternativas. Está a ser feito um levantamento aos bairros camarários, para aferir potenciais vagas e ocupações indevidas, e também um inventário de imóveis devolutos e terrenos vagos adequados para habitação. “Novos bairros sociais é que não, chega de guetos”, garante. O novo Plano Estratégico de Habitação, que deverá estar pronto no fim de abril, prevê também rendas apoiadas e rendas controladas, e vai recorrer ao apoio do 1º Direito, o programa do Governo com um orçamento estimado de 1700 milhões de euros até 2024 (ver texto ao lado).
Esta é, aliás, a estratégia comum à maioria dos concelhos mais atingidos pela crise habitacional. Na certeza de que nunca terão casas suficientes para todos os que as pedem — Lisboa e Porto têm processos ativos de 2014 —, as autarquias procuram novas soluções de apoio social sem ser necessariamente em habitação municipal e com o financiamento da Administração Central.
O alastramento geográfico da crise imobiliária é como uma pinga de tinta da china que cai em Lisboa, um buraco negro, e daí irradia para os outros concelhos, contaminando-os
“Uma vez por semana recebo famílias com pedidos de casa, e infelizmente não têm critérios para tal, porque trabalham, têm rendimentos, mas não são suficientes para fazer face aos novos valores”, conta a vereadora da habitação de Oeiras, que tem atualmente 2289 casos em espera. Os números dispararam em 2017, a acompanhar a subida das rendas. Mas não só. Teresa Bacelar identifica uma outra causa, autóctone. “Chamamos-lhes o efeito Isaltino Morais. As pessoas lembravam-se dele a entregar casas e quando precisaram vieram logo aqui”, conta. Só este ano já há mais de uma centena de novas candidaturas.
A autarquia adquiriu recentemente 86 edifícios para implementar um programa de discriminação positiva para os munícipes mais jovens poderem permanecer no concelho, em edifícios do centro, reabilitados e arrendados a valores cinco vezes inferiores aos do mercado. E está em estudo o lançamento de um apoio ao arrendamento, atualmente só possível através do fundo de emergência social.
Lisboa tem uma medida semelhante. Avançou com a reabilitação de cem fogos no centro histórico, destinados a moradores da zona cujos senhorios não renovaram os contratos, e quer atribuir até ao fim do mês mais 500 imóveis de arrendamento acessível para as classes médias e jovens, que permitirão alojar quase duas mil pessoas. As mais de 3400 famílias em lista de espera aguardam casa mas também subsídios ao arrendamento. Cerca de 30% das candidaturas acabam invalidadas, assegura a autarquia.
Em Sintra, que se segue à capital em número de casos, a aposta vai para a reabilitação de imóveis devolutos e construção de prédios em terrenos vagos, que serão canalizados para arrendamento social e arrendamento acessível. “Com as rendas elevadas, muita população de Lisboa veio para Sintra, mas o problema é que também aqui os preços aumentaram, 25 a 30%. E com eles os pedidos à Câmara”, explica o presidente Basílio Horta.

GUERRA ÀS CASAS DEVOLUTAS
O vizinho Carlos Carreira, autarca de Cascais, também traçou novas soluções para “uma nova realidade sociológica”. Este mês, o anúncio da reabilitação profunda do Bairro Marechal Carmona marcou o arranque de um novo plano de habitação que vai aumentar o número de casas através do aproveitamento de vazios urbanos, terrenos públicos e privados, casas devolutas, mesmo que tenha de recorrer à expropriação. “Há 300 propriedades devolutas em Cascais. Um privado que não trata do seu património depois de todos os incentivos que foram criados não me deixa outra alternativa…”
No norte, a Câmara do Porto garante ter a situação controlada. “Aqui o número de pedidos não está a crescer. A habitação social não se destina nem pode destinar à classe média, mas sim a famílias em situação de pobreza e carência habitacional grave. Temos 15% da população a viver em habitação social municipal com rendas muito baixas, quando em Portugal é apenas 2% da população”, explica a autarquia.
A 15 minutos, na Maia, Fialho de Almeida, administrador da habitação social do concelho, não partilha o otimismo. “Só este ano já tenho cento e tal pedidos e uma capacidade de resposta muito diminuída”, revela. Põe a esperança na construção de um novo edifício de tipologias mais pequenas para a população idosa e nos fundos do 1º Direito, que lhe permitirão lançar cooperativas no concelho.
Mais a sul, na sua rua sem nome, no carro que é casa, Luís lança o fumo do cigarro para longe, e pela primeira vez olha e sorri. Há uns dias ligaram-lhe a dar a boa nova. Já tem casa, um T1, em Cascais. Muda-se antes do verão. Ele já lá foi. “É bonita e tem espaço para os móveis que tenho em casas de amigos”, conta. E depois do sorriso, as lágrimas. “Já posso convidar as minhas filhas.”
Primeira lei de bases aprovada em maio
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Em 2019, a habitação ganha Lei de Bases, Arrendamento Acessível e começa a atribuição de fundos aos municípios
Ao contrário do que acontece com a saúde, a educação ou a segurança social, a habitação nunca teve uma lei que definisse os princípios orientadores das políticas públicas nesta área e estipulasse as obrigações da administração central e das autarquias para garantir que todos têm direito a uma casa, como prevê a Constituição. Mas a lacuna vai acabar. Até meados de maio, o Parlamento deverá aprovar a primeira lei de bases da Habitação. “É esse o objetivo traçado pela Comissão Parlamentar”, diz Helena Roseta, autora do projeto de lei do PS.
Com a audição da secretária de Estado Ana Pinho, na próxima terça-feira, o Grupo de Trabalho da Habitação, Reabilitação Urbana e Políticas de Cidades dá por concluída a ronda que nos últimos meses levou à Assembleia associações de proprietários e de inquilinos ou comissões de moradores de bairros sociais e de génese ilegal, entre outras entidades. Depois disso, na primeira quinzena de abril, os partidos podem propor alterações aos diplomas do PS, PCP e Bloco de Esquerda. PSD e CDS-PP não apresentaram projetos-lei, mas vão sugerir mudanças.
Todos concordam com a necessidade da lei, mas há divergências profundas entre esquerda e direita, numa área com grande carga ideológica, onde se confrontam os direitos à habitação e à propriedade privada.
“À esquerda, há condições para uma convergência, mas ainda há pontos de discórdia a ultrapassar para se aprovar um diploma único”, explica Helena Roseta. O principal desacordo tem que ver com o papel dos municípios, uma vez que o PCP se opõe à descentralização. PS, PCP e BE estão, no entanto, unidos na necessidade de reforçar a intervenção do Estado, por exemplo através da requisição ou posse administrativa de casas devolutas, o que merece a oposição total da direita.
O ANO DA HABITAÇÃO
Mas não é apenas a aprovação da primeira lei de bases que fará de 2019 o ano da Habitação. Até junho entrará em vigor o Programa de Arrendamento Acessível aprovado pelo Governo, que prevê fortes benefícios fiscais, como isenção de IRS e redução do IMI, para os senhorios que arrendem a casa a um preço que não poderá ultrapassar 80% da mediana do valor praticado na mesma zona e para a mesma tipologia.
Os contratos terão a duração mínima de cinco anos — ou de nove meses, no caso de residência de estudantes — e obrigarão à contratualização de seguros que compensem o proprietário da falta de pagamento de renda ou danos na habitação e que protejam o inquilino em caso de quebra involuntária de rendimentos. No final do próximo trimestre ficará disponível a plataforma eletrónica onde senhorios e inquilinos podem concorrer ao programa.
Para as famílias mais carenciadas, está já em vigor o 1º Direito, o programa do Governo que apoia os municípios com um investimento até 60% a fundo perdido para a disponibilização de casas, preferencialmente através da reabilitação. Para concorrer aos apoios, as autarquias têm de apresentar uma estratégia local de habitação. Até agora, só quatro (Lisboa, Faro, Silves e Arruda dos Vinhos) apresentaram candidaturas e 91 manifestaram interesse.