Lisboa, menina e moça, ainda não é uma cidade para as mulheres

Na sua génese, as cidades “não foram desenhadas a pensar nas mulheres” e a capital continua a não ser segura e confortável para todas. Mas o urbanismo com intervenção de género pode ajudar — e sete mulheres que se esforçam por viver em espaço público mostram como.

Se há décadas as mulheres eram educadas a preservarem-se em casa, hoje têm o direito de reclamar a cidade como cenário fundamental do seu quotidiano. Mas a que custo? Enfrentam as mesmas violências e riscos do que um homem? Têm a liberdade plena de mobilidade em espaço público? Circulam pela cidade como, onde e quando querem? ​“A cidade é o espaço mais democrático que temos, a casa de todos e todas, mas continua a não ser desenhada a pensar nas mulheres”, defende a arquitecta e professora Patrícia Santos Pedrosa. “Surgiu para servir a comunidade, mas sempre muito centrada na visão masculina de como gerir uma cidade porque eram os homens os decisores urbanísticos e também quem ocupava e tinha voz na cidade”, acrescenta.

Os arquitectos, urbanistas, projectistas e técnicos — que, diz a professora, continuam a ser, na maioria, homens — ainda “pensam, projectam e decidem cidade a partir do topo da pirâmide e para uma figura neutra”, descurando a diversidade de problemas, experiências, quotidianos e necessidades de vida urbana das mulheres. O que ajuda a que a “feminilidade continue a ser especialmente perseguida e violentada em espaço público”, reforça Patrícia Santos Pedrosa. ​​Para a arquitecta, no processo complexo e dinâmico que é a cidade, é “cada vez mais inaceitável” que a organização e gestão urbanística — que envolve a escolha dos pavimentos, iluminação, o desenho e as distâncias dos percursos, a localização e concepção dos serviços — estejam destituídas da perspectiva de género.
Em 2017, a equipa do Plano de Acessibilidade Pedonal (PAP) da Câmara Municipal de Lisboa (CML) considerou que as mulheres eram as que sofriam mais consequências do medo de estar nos espaços públicos e disse querer eliminar os recantos tenebrosos de Lisboa. O plano pretendia desenvolver um projecto-piloto de urbanismo de género — que já existe em várias cidades de Espanha, como Barcelona, Valência ou Madrid — para definir uma metodologia capaz de ser aplicada em vários locais da cidade. Contudo, contactada pelo PÚBLICO, a equipa do PAP não clarifica o que já foi realizado nos últimos três anos.

Para Patrícia Santos Pedrosa, é urgente que a urbanização de género ganhe espaço na agenda da CML. “Se não podes circular ou viver em cidade, se não tens direito à mobilidade efectiva que concretiza as necessidades, vontades e desejos da mulher, se transformas aquilo que é a tua decisão primeira para te salvaguardares de microviolências e riscos na rua, tens, em última análise, uma liberdade parcial da cidade e uma reclusão da plena cidadania”, justifica. “Em Lisboa ainda não há nenhum espaço público, rua ou bairro que tenha sofrido uma intervenção com perspectiva feminista. O que existe são acções de consciencialização de colectivos”, acrescenta.
Neste mês de Julho é completada a redacção do I Plano Municipal para a Igualdade de Género em Lisboa — já existente em vários municípios de norte a sul do país —, onde se prevê a coordenação das políticas do município para questões de discriminação e desigualdade de género. O assessor da CML Rodrigo Rivera diz ao PÚBLICO que “o diagnóstico é central neste programa”, mas não avança que problemas e necessidades das mulheres no espaço público estão a ser considerados. “Se os técnicos não vão aos bairros, não sabem o que as pessoas têm como prioridades para que o seu direito à cidade seja concretizado em plenitude, não podemos depois ter uma ideia média e macro da cidade que funcione, porque é abstracta”, alerta a professora.

A importância de ter vozes femininas no planeamento da cidade está reflectida no quotidiano das mulheres: Cláudia, que não consegue visitar os jardins da cidade por não terem piso táctil; Fatinha, que não sai de casa antes de pensar em como vai regressar; Rafaela e as duas mudas de roupa para enfrentar um dia; Odete, silenciada em espaço público para conseguir viver nele; Inês, cujo carrinho de bebé a faz excluir zonas da cidade; Vanessa, que muda constantemente de percurso para se proteger; e Lia, que nunca saiu de casa sozinha desde que vive em Lisboa.
Cláudia: Quando Lisboa não vê uma mulher cega
Cláudia Carmo vive em Lisboa há 18 anos, mas nunca viu a cidade — a doença glaucoma levou-lhe a visão quando era jovem. Depois de terminar o ensino secundário, deixou a sua aldeia de Ucanha, perto de Lamego, para ir estudar Tradução na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. A aventura, que se adivinhava complicada, tornou-se “um terror” quando Cláudia se apercebeu de que a cidade também não a vê. “Lisboa não é concebida a pensar em mim, enquanto mulher que não vê. Nunca me senti incluída ou ouvida aqui”, conta, aos 37 anos, sentada num banco junto à Faculdade de Letras, no Campo Grande, aonde regressa sempre “que tem vagar”, apesar de nunca o conseguir fazer em segurança.
A passadeira à frente da faculdade é rebaixada e não tem piso táctil, o que faz com que Cláudia não perceba que a está a atravessar — já reportou “há meses” o caso à CML, mas a resposta ainda não chegou. Pela cidade, há tantas outras passadeiras sem piso táctil nem sinais sonoros. Em 2014, o inventário feito em Lisboa mostrava que apenas um em cada 20 semáforos tinham sinais sonoros. “Há também passadeiras só com som de um dos lados e outras em que o som continua a tocar mesmo quando fica intermitente”, conta. Foi precisamente esta última situação, em que o aviso sonoro continuou a tocar depois de o sinal verde cair, que levou Cláudia, em 2010, a ser atropelada. Aconteceu “à porta de casa”, na passadeira entre a Avenida 5 de Outubro e a Avenida das Forças Armadas. “Eu não morri porque me virei de lado e caí bem”, conta.
Cláudia ganha o dia se conseguir aproveitar o sol na rua, mas não o consegue fazer nos jardins da cidade, que não têm piso táctil. Quando teima em ir à Quinta das Conchas, os desafios começam logo pelo caminho. “Contornar os carros e as árvores no meio do passeio ou os caixotes do lixo mal colocados fazem com que muitas vezes ande na berma da estrada.” O percurso piora quando há obras na cidade. “Há falta de sinalização da protecção das obras. Já fui contra andaimes e os buracos, se não estiverem protegidos, são muito perigosos. Conheço uma rapariga que caiu dentro de um”, explica.
Mas Cláudia não tem só medo de cair num buraco ou de ser atropelada. Vive num “duplo perigo”, porque, além de cega, é mulher. “Enquanto mulher, eu não tenho apenas medo de cair. Tenho medo que me façam mal. As mulheres são as que mais sofrem violência na rua”, considera. Cláudia não se esquece quando, “há uns anos”, a caminho da faculdade, um homem a perseguiu. “Eu ouvia-o, estava cheia de medo.” Também no metro, com a carruagem “a abarrotar”, um homem sussurrou-lhe comentários ao ouvido. “Na altura, não consegui reagir. Hoje, daria um berro”, garante.
Para Cláudia, as situações de assédio constroem uma percepção de medo de Lisboa que impede a plena mobilidade: “Se for tarde e me disserem ‘​vem a tal sítio’, eu não vou. Sendo mulher, tenho outros riscos.” Durante o dia, sente-se mais segura, mas tem o cuidado de andar “pelos sítios mais públicos”. Ainda assim, a experiência dos anos na cidade fez de Cláudia uma pessoa mais desconfiada e cautelosa. “As pessoas, com intenção de me ajudar, pegam-me no braço sem dizer nada. Eu fico assustada. Às vezes, penso que é para outras coisas.”
Apesar de reconhecer os avanços que a capital sofreu, Cláudia lamenta que Lisboa esteja “30 anos atrasada” em comparação com Luxemburgo ou Bruxelas. Agora, deixou de esperar pelo acertar dos ponteiros da capital. “Já não suporto viver aqui. Sinto-me excluída todos os dias. Vou viver para o outro lado do rio e só venho a Lisboa se for mesmo necessário”.

Fatinha: Quando em Odivelas, ir ao centro é ir “a Lisboa”

Às 5h, antes de o dia romper com a primeira luz da manhã, várias mulheres negras esperam o autocarro na paragem perto de casa de Fatinha Vera Cruz​, em Odivelas. “Dificilmente vejo homens”, diz a mulher de 49 anos, ​natural de São Tomé. “São mulheres que saem de casa às 4 e tal da manhã para trabalhar no sector da limpeza ou trabalhos domésticos”, explica. Para Fatinha, a cidade não está pensada para estas mulheres, desde logo porque não oferece transportes que respondam aos seus horários e necessidades. “Nós percorremos grandes distâncias para chegar a uma paragem onde passe um autocarro por volta das 5 e pouco. A Carris, sendo pública, não se pode esquecer de que nem toda a gente entra às 9h”, diz.
O desassossego dos transportes era o dia-a-dia de Fatinha Vera Cruz quando trabalhava no Campo Grande. “Na altura, só tinha autocarro às 5h30, e entrava às 6h. Se não houvesse trânsito, conseguia chegar a horas, senão tinha de gastar aquilo que não tinha e apanhar um táxi.” Quando começou a trabalhar em Odivelas, no Centro Comercial Strada Outlet, decidiu que ia a pé para o trabalho nos dias em que entrava às 6h da manhã. “Era a 20 minutos de casa. A ideia não me agradava muito porque passava por zonas pouco habitadas. Mas pensava: ‘Seja o que Deus quiser…’”, conta. Em poucos meses, desistiu. “Era muito abordada por homens que passavam por mim de carro. Perguntavam-me se eu queria ir com eles. Às vezes, chegavam a seguir-me, a buzinar atrás de mim. Eu ficava cheia de medo. Punha-me a correr e chegava ao trabalho com o coração a sair pela boca.” Acabou por comprar um carro, que avariou passado pouco tempo. “Agora peço a colegas minhas para me irem buscar.”
Fatinha Vera Cruz vive em Odivelas há mais de 20 anos e esforça-se por não cair no quotidiano de “nunca sair do bairro”. Vai várias vezes “a Lisboa”, como costuma dizer, embora, para si, signifique ir ao centro da cidade, onde “há actividades culturais, de lazer, onde se pode passear”. Mas antes de Fatinha sair de casa para ir ver uma peça de teatro ou um concerto, é preciso pensar em como vai regressar. “A certa hora, já não existem autocarros de regresso, só as redes de madrugada, em que não gosto de andar sozinha.”
Quando veio para Lisboa, ainda tentou viver no centro da cidade. “Foi muito complicado. Não era só os altos preços. Cheguei a ver uma casa onde me disseram: ‘Não queremos pessoa dessa cor aqui’”. Em Odivelas, já tinha lugar. “A cidade reflecte o racismo”, analisa.

Contudo, seja “em Lisboa” ou em Odivelas, Fatinha diz ser “muito medrosa” a andar pela cidade, principalmente de noite. “Fico sempre com aquele frio na barriga.” Não se consegue abstrair das histórias de assédio ou violação que já ouviu, e também não há nada nos caminhos que atravessa que faça estes pensamentos desvanecer. “Nós não encontramos polícias nem seguranças nos locais que são conhecidos por serem violentos para as mulheres.”
Para Fatinha, este medo, que impede a liberdade efectiva em cidade, tem género. Em 2017, o primeiro Inquérito Municipal sobre a Violência de Género em Lisboa, do Observatório Nacional de Violência e Género, mostrava que 52,9% das mulheres já mudou as suas rotinas depois de ter sofrido um acto de violência e 29,1% ficaram com medo de se deslocar sozinhas. “Eu não vou aonde quero, como quero, às horas que quero. Se fizer esta pergunta a um homem, se ele se desloca por todo o lado como quer, é provável que ele diga que sim. O meu marido, por exemplo, gosta muito de andar, e quando lhe apetece vai. Nem pensa em mais nada.”
Depois de duas décadas em Lisboa, Fatinha gostaria de ser ouvida na cidade. “Quem projecta a cidade não inclui outras realidades no plano urbanístico. Aquilo que as mulheres negras vivem na cidade podia acrescentar imenso às estratégias de mobilidade em Lisboa. A mulher negra é uma parte integrante, deve sentir que cidade pensa nas suas necessidades, que oferece qualidade de vida cultural, de segurança, de lazer. A cidade só ganha se nós sentirmos que isto também é nosso.”

Rafaela: Quando pensa num perigo, pensa num homem
Há um monólogo silencioso que acompanha Rafaela Neves, de 21 anos, quando sai das aulas na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, onde estuda no período nocturno, e se dirige ao parque de estacionamento do Hospital Curry Cabral, onde deixa o carro estacionado: ​“Olhar para o lado direito. Olhar para o lado esquerdo. Ver o que se está a passar na rua e pensar no que faria se aparecesse um homem a abordar-me. Para onde devo fugir? É mais inteligente correr para o carro ou voltar para trás?” O seu medo não é ser assaltada, mas que um homem a aborde. “Quando penso num perigo na rua, não é um perigo abstracto. Eu penso num homem. Não tenho medo de ser assaltada, mas sim que um homem me agarre, me leve para algum lado, que me toque.”
O caminho leva menos de dez minutos, mas, quando é percorrido de noite, é meticulosamente ponderado. “Vou pela Avenida de Berna, que já acho escura, mas tem mais luz do que o caminho pelo lado da Gulbenkian”, explica. Já de dia, quando vai para a faculdade à hora de almoço ou no final da tarde, a Avenida de Berna, no Campo Pequeno, “está cheia de gente”, o que não significa maior descanso. “Ouço sempre um conjunto de comentários, piropos, como se estivesse numa parada. Acontece todos os dias. Não me lembro de fazer esta rua sem um único comentário”, conta. “E não me venham com a conversa da roupa”, diz, apontando para a camisola preta e as calças de ganga que traz vestidas.
Rafaela vive desde pequena no Cacém, em Sintra. Quando estudava na Escola Secundária Pedro V, em Sete Rios, andava muitas vezes sozinha pela cidade, o que a fez construir mecanismos de defesa. “Saía de casa sempre com duas mudas de roupa. Do comboio em Sete Rios até à escola ia a pé pelo terminal dos autocarros e havia muitos homens motoristas. Eu levava uma camisola grande só para fazer o caminho até à escola, e depois tirava a camisola e ficava com a minha roupa normal. Mesmo que tivesse de correr para o comboio cheia de calor ou suada, nunca despia a camisola.”
Esta prática brotava dos vários episódios de desconforto que foi amealhando na adolescência – como quando encontrou um homem a masturbar-se a olhar para si e para a sua mãe numa praia em Peniche. Ainda hoje há momentos em que continua a adequar a roupa à rua. “Quando sei que vou passar mais tempo na rua, vou mais tapada. Se estiver menos tempo na rua, vou mais à vontade, a probabilidade de me sentir incomodada é mais pequena”, conta.
No dia-a-dia, continua a substituir percursos curtos mas tenebrosos por caminhadas mais longas, que tenham mais luz e ruas mais amplas – duas das principais reivindicações das mulheres espanholas às administrações locais de Barcelona ou Madrid nos últimos anos. Mas há também vivências na cidade que são descartadas – o primeiro inquérito municipal sobre a violência de género em Lisboa partilha que, em 2017, apenas 22,8% das mulheres saem de casa para actividades de lazer, desde eventos culturais a bares e discotecas.
“Há coisas que me apetece fazer e não faço porque sei que podem ter implicações para mim enquanto mulher. Se quiser ir só com uma amiga para o bairro, celebrarmos alguma coisa e apanharmos uma bebedeira, não vamos”.“Lisboa não é para todos. Nem todos temos a mesma satisfação em estar na cidade”, acrescenta.

A experiência em cidade, que Rafaela diz se ter tornado cada vez “menos prazerosa”, foi moldando também a sua personalidade. “Eu sinto que sou uma pessoa muito mais negativa, chateada. É uma raiva constante. Passa a ser uma coisa minha. É quase um traço de personalidade, porque é uma dimensão presente, não é só uma coisinha. Não é um piropo ontem. Não consigo pensar em mim na cidade sem pensar nessa parte. Não existe o outro lado sem este.”

Inês: Quando a cidade, para uma mãe, é reduzida
Inês Marinho vive em Alvalade, “a aldeia dos bebés de Lisboa”, onde “tudo dá para fazer a pé”. Mas quando o filho Zico nasceu, o mapa da cidade mudou. “A cidade para mim, enquanto mãe, muda. O mapa fica mais reduzido. Dá para perceber quais são as zonas da cidade que são pensadas para crianças porque dou por mim a repetir sempre os mesmos sítios e a excluir outros”, explica Inês, de 29 anos.

A Graça ou o Chiado são alguns dos locais onde a vida “não é nada facilitada” para uma mãe com carrinho de bebé. “Eu ia muitas vezes ao Chiado, mas deixei de ir desde que o Zico nasceu. Não é que seja impossível, mas, às vezes, é mesmo complicado”, explica. “Os caixotes do lixo mal-arrumados, as trotinetas mal-estacionadas e as esplanadas que se estendem pelo passeio obrigam-me a fazer uma coisa nada cívica que é usar a ciclovia ou a berma da estrada para conseguir andar com o carrinho”, conta Inês, que considera a calçada portuguesa o bicho-papão dos pais. “Não deixa que nenhum carrinho sobreviva”, explica.
Sair de Alvalade para o resto da cidade nem sempre é fácil, principalmente se o tiver de fazer na estação de comboio mais próxima, a de Entrecampos. Inês Marinho não consegue descer na saída da estação de comboio junto às Águas de Portugal, que fica mais perto da sua casa. “Não há elevador e as escadas rolantes só sobem, não descem. Houve uma vez que fiquei quase uma hora a tentar sair da estação com o carrinho. No limite, para conseguir descer, tiro o meu filho do carrinho, desmonto-o, levo o meu filho num braço e o carrinho noutro”, explica. Desde então, tem de sair no lado da Avenida 5 de Outubro, que tem elevador. “Depois atravesso quatro vias rápidas até chegar à minha saída das Águas de Portugal e vou para casa.”
Segundo o relatório da UN Women, as mulheres são as principais utilizadoras de transportes públicos múltiplos, uma vez que ainda têm no seu quotidiano vários micro-percursos com objectivos funcionais — como, por exemplo, ir à farmácia ou ao supermercado durante a hora de almoço ou ir buscar as crianças à escola. Na opinião de Inês, era importante que os transportes de Lisboa estivessem preparados para “outras realidades”, como já acontece noutros países. ​Em 2013, a aplicação Safetipin, que permite às mulheres classificarem as ruas por critérios de segurança, foi contactada pelas autoridades locais de Hanói, no Vietname, que queriam incluir a perspectiva das mulheres na escolha da nova linha de metro.
Inês Marinho, natural de Coimbra, considera que Lisboa a tem tornado “mais protectora do que gostava de ser”. “Eu ia a pé para a escola primária, mas é mais difícil imaginar o meu filho a fazer isso em Lisboa”, conta. Por enquanto, e nos próximos anos, os pais levam o Zico à creche. A rotina ainda é fresca, começou em Março, e Inês não esquece o primeiro dia de infantário do filho, mas pelas más razões. “Fui assediada por um taxista à porta do infantário. O homem não saiu dali até eu ter uma reacção quase violenta.”

Odete: Quando a pior parte é o silêncio a que se sujeita
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A vida na cidade para Odete Ferreira, enquanto mulher ‘trans’, cose-se de constantes situações de assédio, intimidação e perseguição. A jovem de 23 anos destaca um episódio no Rossio em que um homem lhe bateu no rabo à frente da polícia. “Eu até tropecei. Olhei para a polícia do género: ‘Vão fazer alguma coisa?’”, conta. Odete ainda encarou as pessoas da esplanada que estavam “mesmo à frente”, mas ninguém interveio. Pelo contrário, riram-se “como se fosse entretenimento”.

“Estas são tentativas de me diminuírem em espaço público”, diz Odete, que garante se terem tornado mais frequentes nos últimos dois anos de transição. “Eu não sou capaz de existir numa forma igual às outras pessoas em espaço público. Saio à rua e sinto que tenho menos direito ao espaço do que os outros.” Para viver a cidade, é forçada a apagar-se. “Cada vez mais tenho cuidado com o que visto, calculo mais as minhas expressões, e tento passar despercebida no meio das pessoas. Às vezes só me apetece vestir um fato de treino e sair à rua, sinto que não vale a pena investir em nenhum tipo de expressão, fico tão desmotivada que desisto de conviver, de me expressar e de existir em espaço público. Tento apagar-me o máximo possível. A pior parte de tudo isto é o silêncio a que me submeto em espaço público”, acrescenta.
No seu entender, há uma “higienização da cidade”, que relaciona a perspectiva de classe e da identidade de género. “Quem tem acesso à cidade é quem tem dinheiro para chegar até aqui, ou para viver aqui. E quem tem acesso a mais dinheiro e ao melhor trabalho são pessoas cisgénero. A maior parte das pessoas ‘trans’ que conheço não consegue sequer chegar ao centro da cidade, vivem na periferia, que muitas vezes não tem o que há aqui: jardins, espaços de leitura ou convívio.”
“Impedir o acesso à cidade é impedir o acesso à vida. A vida acontece na cidade, não é fechada numa casa”, defende. Por esta razão, esforça-se para viver o espaço público, ainda que com custos. “As vezes, acabo por ter uma pequena paranóia. Esta coisa ‘macro’ que é a cidade acaba por se expressar nas minhas relações pessoais. Há um certo medo que se instala na minha vida. Às vezes, quando conheço alguém, fico com medo, porque a experiência que tenho é andar na rua e me acharem um nojo.”

Vanessa: Quando começou a andar com uma faca de manteiga na mala
A família esperava que fosse doméstica, esposa e mãe. Era difícil ir à escola, por isso, terminou o 9.º ano já era maior. “Até aos 18 anos, eu não tinha nenhuma imagem de Lisboa. Nunca tinha visto a Torre de Belém. Vivia em Loures, mas era como se fosse numa redoma”, conta Vanessa Lopes, de 24 anos. Quando completou a maioridade, fugiu de casa, à revelia dos pais, “para não ter de seguir a tradicional vida cigana”.

Saiu sem dinheiro, sem casa, sem amigos e sem escolaridade. Fugiu para Peniche, durante dois meses, enquanto explicava aos pais, à distância, que “queria outra vida”. Quando “as coisas acalmaram”, decidiu ir viver para o centro de Lisboa, onde se voltou a sentir uma criança, com “medo de tudo”. A pouco e pouco, o medo abstracto da cidade foi amadurecendo e ganhando rostos e vozes. “As situações de assédio tornaram-se constantes, principalmente quando vinha tarde do trabalho. Comecei a andar com uma faca de manteiga na mala, que não aleija muito mas é uma ferramenta de defesa”, conta.
Por ter “a pele branquinha” Vanessa diz não parecer cigana, o que faz com que sofra menos preconceito. Mas continua a sentir que não é bem-vinda na cidade. “Estou sempre a ver sapos à porta das lojas. Sinto que aquele espaço não me quer ali.” Por outro lado, as “raparigas que são ciganas e não parecem” tornam-se objecto de fetiche: “Já ouvi muitos homens a dizer ‘nunca comi uma cigana’ e depois quando vêem uma mulher cigana que acham gira não a largam.”
Quando Vanessa Lopes saía tarde do trabalho, no Prior Velho, era um tormento ficar na paragem à espera do autocarro.“Não acho que a paragem esteja bem ali. Está numa rua onde só passam carros, mas completamente isolada, só se vê mato ao fundo. Devia estar mais perto do local onde estão as empresas, onde há mais luz, movimento”. Depois de apanhar o autocarro, sai na paragem do Cais do Sodré, perto de casa. “Em vez de fazer o percurso pelos bares, pela rua de cor-de-rosa, que ficava mais rápido para mim, dou sempre a volta pelo jardim. Faço sempre assim, é a minha rotina, porque já sei como funciona”, conta.
Para Vanessa, contar os cinco anos desta “nova vida” é contar as cinco casas onde viveu. Morou no Parque das Nações, em Santa Apolónia, Arroios, Santo Antão do Tojal e agora no Cais do Sodré. “Ainda não consegui ficar no mesmo sítio mais de um ano. As casas onde estava foram vendidas para alojamento local”, explica. Este ano, um relatório da agência de notação financeira Moody mostra que Lisboa é a cidade europeia que mais tem perdido população desde 2011. “Há jovens como eu que estão sozinhas, que não têm ajuda dos pais, que lutam para ter uma escolaridade e que não conseguem encontrar um lar estável para fazer a sua vida em Lisboa.”

Lia: Quando não é possível andar sozinha
Lia Ferreira, de 39 anos, foi atropelada à porta de casa com quatro anos de idade, em Santa Maria da Feira, onde nasceu. Começou a lidar com a rejeição quando saiu do hospital numa cadeira de rodas. “Mas agora já nem penso sobre isto, já sei que é assim”, garante. Há um ano que vive em Lisboa, em São Domingos de Benfica, e nunca saiu de casa sozinha. Nem acha que vai conseguir fazê-lo nos próximos anos. “A mobilidade é muito má para quem anda com uma cadeira manual”, justifica. “Os passeios são muito irregulares, deformados e mesmo muito inclinados, não é apenas uma inclinação ligeira.”
É certo que não é possível mudar a inclinação da cidade, mas é urgente melhorar a forma como os espaços são concebidos. “A cidade não está desenhada para me receber, está desenhada para me afastar. Precisava de encontrar respostas a nível de distâncias possíveis de cadeira de rodas, ou relativamente à localização e adaptabilidade de transportes”, apontando para o metro de Lisboa, em que a maior parte das estações não está adaptada para pessoas com mobilidade reduzida. E a tudo isto, acresce a dimensão de ser mulher. “Eu andava sozinha no Porto ou em Santa Maria da Feira, mas não o faço em Lisboa porque tenho receio de não conseguir ultrapassar os obstáculos. Ai, as minhas fragilidades estão mais expostas a terceiros, que podem ajudar ou poderão aproveitar-se da minha exposição.”
Lia Ferreira, arquitecta de formação e provedora municipal de Cidadãos com Deficiência na Câmara Municipal do Porto entre 2012 e 2018, diz que a urbanização pode ajudar a reduzir o perigo da cidade. “Um espaço escuro, escondido, vai potenciar um tipo de uso, como situações de violação, que não potenciaria se ele fosse um espaço arejado, iluminado, onde as pessoas se sentissem vistas a tempo inteiro”, explica.
Na sua opinião, Lisboa tem sido planeada e distribuída do ponto de vista económico e organizacional: o comércio e empresas estão nos melhores locais da cidade, que também são os mais iluminados. “A cidade não é pensada para as pessoas, nem para permitir vivências nenhumas”, acrescenta. Ainda assim, considera que vivemos “num momento de mudança” a caminho da humanização das cidades – através, por exemplo, dos modelos suaves de transporte, como as trotinetas – mas as motivações continuam a ser económicas: “Não é a condição feminina que está a ser tida em conta na forma como a câmara está a adaptar a cidade. É a perspectiva da oportunidade económica.”
“Faz parte da cultura urbana em Portugal as pessoas terem de se adaptar à cidade. Mas temos de mudar isso. Fala-se muito que a mulher quer uma cidade para andar de saltos, mas não creio que seja isso. O que as mulheres querem é segurança e conforto”, conclui.