Jovens e sem bata, estes médicos fizeram uma revolução no Martim Moniz

Há dois anos uma equipa de recém-especialistas criou uma Unidade de Saúde Familiar, na zona de Lisboa onde os médicos não queriam trabalhar, olhando sobretudo para quem mais precisava, os imigrantes e os idosos
Têm entre 31 e 35 anos, não usam batas, para que haja menos uma barreira, não aceitam a entrada de delegados de informação médica, para não perderem tempo nem se deixarem influenciar, comunicam por chat interno, para serem mais eficazes e se conseguirem dedicar melhor ao que estão a fazer e, quando na consulta não conseguem comunicar com quem têm à frente, por barreiras linguísticas, recorrem ao Google Translate e Google Images: escrevem no computador em português e o utente – muitas vezes imigrantes do Bangladesh – responde em bengali, ou tentam explicar-se com imagens. São os nove médicos da Unidade de Saúde Familiar (USF) da Baixa, em pleno Martim Moniz, na freguesia de Santa Maria Maior, em Lisboa.

“No início foi uma pequena revolução”, explica um deles, Tiago Lopes. Eram quatro médicos acabados de sair do internato, recém-especialistas de medicina geral e familiar. Foram eles quem, com a restante equipa de enfermeiros e administrativos, fundou a Unidade de Saúde Familiar (USF) da Baixa, à qual pertencem hoje cerca de 15 mil utentes, de zonas como Alfama, Castelo, ou Mouraria, com uma população fortemente idosa, e, por outro lado, aproximadamente um terço de imigrantes.

Antes da USF abrir portas no Martim Moniz, há dois anos, feitos no passado sábado dia 17, o grupo ainda esteve na rua de São Nicolau, na antiga Unidade de Cuidados Personalizados. Era um prédio velho com hostels em cima e em baixo, onde por vezes a eletricidade falhava e a entrada não estava preparada para pessoas com mobilidade reduzida.

Sonharam juntos esta USF. “Pegávamos em toalhas, sandes, cervejas, e íamos para o jardim. Reunimos bastante um mês antes para definir regras, discutir ideias…” recorda Tiago Lopes.
“Aqueles médicos de fraldas”
Martino Gliozzi, médico italiano que veio para Portugal fazer o internato, é o coordenador da USF e, claro, lembra-se bem desses tempos. Se não lhe tivessem proposto coordenar esta unidade, teria saído da Europa. Era esse o seu plano, continuar o trabalho como aquele que fez em Moçambique, na Tanzânia ou no Brasil; ali, durante um mês esteve na Rocinha, favela do Rio de Janeiro de onde agora chegam à USF da Baixa alguns jovens médicos, sob programas de intercâmbio como o Family Medicine 360º (FM360º) e Intercâmbio Hippokrates.
“Se calhar era preciso ser um bocadinho louco, porque era um centro de saúde onde ninguém queria trabalhar. São bairros que antigamente eram considerados complicados e os médicos não queriam vir para cá. É uma população com problemas sociais e económicos, desemprego, alcoolismo, violência doméstica… E a imigração exigia uma grande capacidade de adaptação, para conhecer as culturas, falar inglês… Nem toda a gente está disposta. Talvez o facto de eu ser estrangeiro possa ter ajudado a pensarem em mim”, recorda ao DN o médico.

Houve quem lhes torcesse o nariz quando chegaram. “Chegaram a chamar-nos ‘aqueles médicos de fraldas'”, lembra Ana Cebola, outro dos quatro elementos iniciais, que fez todo o curso de Medicina em Espanha, e que só regressou a Portugal por causa deste projeto.

“No início foi um bocado complicado. Principalmente na população idosa: ‘Chegam médicos novos e mudam tudo. Isto agora é uma rebaldaria.’ Também não foi bem aceite pelos delegados e por alguns médicos”, conta Tiago Lopes. Mas depressa as coisas mudaram. Que o diga Rui Almeida, segurança.

“Eles têm um ideal. Fossem todos como eles…”, diz, interrompendo para dar indicações a um homem e uma mulher chineses que lhe pediram indicações sobre o atendimento. Os utentes falam muito com ele. “Contam-me com foram as consultas, pedem opiniões… Desde que eles [médicos] estão cá a medicação que os utentes tomam é muito menor.” O segurança conta ainda que os utentes “aprenderam a respeitá-los”.

Sem filas à porta
Uma das mudanças mais claras foi o facto de terem deixado de existir longas filas à porta da unidade logo às 8.00, hora da sua abertura. As vagas do dia deixaram de ser acessíveis apenas de manhã e tornaram-se flexíveis e alargadas ao dia todo, até às 20.00, hora de encerramento da USF. O planeamento familiar, a saúde materna e infantil, e as visitas domiciliárias começaram a acontecer de forma organizada. “As pessoas sabem que estamos preocupadas com elas. A idade tem um impacto, mas até pode ser uma mais-valia. Às vezes para as tranquilizar digo: ‘Vou estar com vocês aqui a minha vida toda.'”

É um dia normal na USF da Baixa. Chegam mães com pequeníssimos bebés. Outras, com duas crianças, esperam para entrar nos consultórios. No seu, Tiago Lopes tem uma frase atribuída a Oscar Wilde: “A melhor maneira de tornar as crianças boas é fazê-las felizes.” À entrada, diz a um dos miúdos: “Prazer, eu sou o Tiago.”

Mais tarde, é Maria Rosa Fernandes que está à sua frente. As questões de saúde misturam-se, aqui e ali, com um pormenor da sua vida. E nem por acaso, quando abre a carteira à procura de alguns papéis que lhe deram no hospital, aparecem vários rostos queridos, em pequenas fotografias de passe que ali guarda.
Martino Gliozzi, no piso de baixo, recebe Mohammed Salim Ahmed, do Bangladesh. Fala português e não inglês e é parco em palavras. Sobre a USF diz: “Tudo bem, graças a Deus.” As filhas nasceram em Espanha, onde antes esteve a trabalhar. Agora, toda a família é seguida ali.
As questões sociais atrás da saúde
Martino Gliozzi diz aos seus utentes, meio a sério meio a brincar, que estará lá a vida toda, mas tal não é certo para todos os que tem do outro lado. Existem, sobretudo nos idosos, questões clínicas que têm por trás termos que nada têm de clínico: despejo e pressão imobiliária, que criam problemas como ansiedade ou depressão.

“Eu – e outros médicos também – estou a registar de maneira metódica todas as pessoas que estão a ser despejadas ou têm ameaça de despejo. Tenho uma pequena história de cada um deles. Posso pôr: ‘Hipertensão, diabetes, cancro na próstata, despejo, desemprego, ou insuficiência económica. É a minha maneira de ver a medicina. Estas coisas têm um grande impacto na saúde. Uma pessoa que é ameaçada de despejo com 70 ou 80 anos vai aumentar o isolamento, vai ter dificuldade em gerir a medicação”, afirma Martino Gliozzi.

Outra das questões sociais mais presentes na zona abrangida pela USF da Baixa é o isolamento dos imigrantes. “Um clássico aqui é a consulta a um homem de 30 anos do Bangladesh sozinho, com depressão”, explica o médico, que lembra que é muito comum chegar primeiro a Portugal o homem sozinho, para se legalizar e encontrar trabalho e só então procura constituir família ou, se tiver deixado família no país de origem, trazê-la. “Há muitos imigrantes que ficam imensamente agradecidos porque estamos a ouvi-los e porque falamos inglês.”

Foi para eles, e para melhorar os seus cuidados de saúde, que foi criado também o Bengalisboa Community Health Project, para o qual a ponte com a comunidade foi feita através do do Centro Islâmico do Bangladesh (Mesquita Baitul Mukarram).

As histórias sucedem-se. O coordenador da USF conta que algumas das que mais o marcaram têm que ver com episódios de violência, nomeadamente violência sexual, e que alguns utentes seus conseguiram pela primeira vez contar-lhe as suas experiências, mesmo que antigas, e refazer as suas vidas depois disso.
É para casos com um fundo como este que existe a Prescrição Social, ideia importada de Londres, cidade onde Cristiano Figueiredo, outro dos médicos da unidade, fez um intercâmbio. A Prescrição Social, que conta um ano na USF da Baixa, é aplicada quando, por exemplo, um médico percebe que o seu utente o procura apenas para conversar, porque está sozinho, ou que enfrenta dificuldades económicas que o impedem de se alimentar suficientemente.

“É uma ação concertada para resposta a situações clínicas que por trás têm problemas ou fragilidades sociais. São respostas internas e externas, da comunidade. Aqui temos a junta de Freguesia, a Santa Casa [da Misericórdia], a Associação Mais Proximidade Melhor Vida, a Renovar a Mouraria…” diz a assistente social Andreia Coelho, que faz a articulação entre o médico e a resposta adequada ao problema social, com a possibilidade de receber retorno em relação à forma como o utente está a ser acompanhado.

Outra das marcas desta USF é o programa Walk With a Doc, importado dos Estados Unidos. Todas as últimas quartas-feiras do mês há um passeio por Lisboa de cerca de uma hora, antecedido por uma pequena palestra dada na USF por um médico ou enfermeiro acerca de um tema ligado à saúde. No próximo, Martino Gliozzi falará da violência doméstica. “É uma temática muito complicada. Temos muitos idosos e até homens que são vítimas de violência doméstica. O caso típico é o homem que bate na mulher, mas não é só isso, é muito mais”, diz.

No dia em que visitamos a unidade, a enfermeira Sara Ramos, que faz parte da micro-equipa de Martino Gliozzi (cada médico tem o seu enfermeiro, e idealmente o seu administrativo, embora nesta momento só existam quatro), não para. Ora muda o penso a um utente do Bangladesh, ora dá uma vacina a um outro, chinês, que não falava nem inglês nem português. “Falámos praticamente por gestos”, adianta.

Especialista em saúde materna, a enfermeira dirige um grupo de grávidas desde que percebeu que as consultas de saúde materna contavam sobretudo com imigrantes e que muitas estavam bastante isoladas e dependentes dos maridos. Ao programa de técnicas de alívio da dor ou da promoção da atividade física, por exemplo, aliam o conhecimento dos recursos comunitários. “Quando fizemos uma caminhada aproveitámos para informar dos transportes para a MAC [Maternidade Alfredo da Costa].”

Ao acompanhamento das grávidas acrescem as visitas domiciliárias depois de o bebé nascer e as conversas para pais, com temas que vão da amamentação à alimentação. No Bangladesh e no Nepal, por exemplo, os bebés não comem sopas, põe-se também a questão da carne halal, por exemplo, explica a enfermeira. Com um workshop como aquele que fizeram de sopas e papas biológicas, os novos pais podem, pelo menos, perceber que quantidades devem dar aos seus filhos, mesmo que não queiram adaptar a sua alimentação àquela que aqui habitualmente se pratica.

Dois dos três filhos de Shakira, que há sete anos chegou vinda do Bangladesh ao Martim Moniz, nasceram cá. Pergunta se podemos falar em inglês. Só agora começou a ter aulas de português. O marido trabalha numa loja, ela está em casa com as crianças. Conversamos a correr, com as crianças, elas sim, realmente a correr mais à frente entre caixas de armazém de uma loja. “Os novos médicos estão muito bem. Tratam muito bem de nós. Tudo é melhor aqui. Qualquer problema com as crianças venho aqui ou às urgências da Estefânia. Quero ficar cá.”

Outra parte importante das visitas domiciliárias da equipa da USF da Baixa são os idosos. “Quando chego, muitas vezes já não sou a enfermeira, sou a Sarinha ou a Sara. Penso mesmo que sou a comunicação que têm com o exterior. Muitos não saem, muitos não querem sair, já têm hábitos muito marcados. Veem televisão e discutem comigo algumas notícias”, conta Sara Ramos.