Lisboa é isto. Nem centro, nem periferia, Zona Não Vigiada

Este sábado, com entrada gratuita, a Zona J enche-se de sons urbanos, com os ingleses God Colony, a chilena Tomasa del Real ou o luso B Fachada, mas o Zona Não Vigiada é mais do que isso, com residências numa cidade em trânsito, nem centro nem periferia, nivelada pela vontade de se envolver.
Existe quem imagine que na Lapa, em Lisboa, só habita gente engravatada que passa o tempo a pensar como amealhar mais dinheiro enquanto fuma charutos em requintados palacetes. Da mesma forma continua a haver quem inscreva bairros que são parte integrante da cidade, mas que ao mesmo tempo parecem situar-se numa redoma, como a Zona J, em Chelas, numa lógica de vazio, como se aí não existissem expectativas, humanidade, produção de cultura, afectos.
Não é fácil derrubar marcadores sociais estereotipados. Mas é possível. Através da arte, por exemplo. É nisso que acredita a companhia Casa Conveniente da encenadora Mónica Calle ou a associação Filho Único, numa cidade em trânsito, nem centro nem periferia, nivelada pela vontade de se envolver. Há dois anos criaram o festival Zona Não Vigiada, na Zona J, Bairro do Condado, Chelas, no ringue de futebol, a lembrar as festas dos bairros nova-iorquinos que popularizaram o hip-hop nos anos 80.
Foi uma tarde inspiradora com boa música e excelente ambiente, com pais e filhos das avenidas novas ou velhas de Lisboa a descobrirem-se à volta da intemporal proposta de juntar pessoas ao ar livre e conviver com música. Este sábado, das 16h às 21h, no mesmo local e integrado no Lisboa Rua, o efeito poderá repetir-se através de Equiknoxx, God Colony, B Fachada, Tomasa del Real ou Nigga Fox.

Mas o evento quis ir mais longe este ano. “Desejávamos que o envolvimento fosse ainda mais profundo, daí termos pensado em ateliers onde se proporcionassem encontros que de outra forma não seriam possíveis, envolvendo pessoas daqui, ou de outras proveniências, fazendo-os coabitar durante duas semanas no âmbito da criação artística”, diz-nos a actriz Inês Vaz da Casa Conveniente, a estrutura teatral que tem trabalhado em Chelas.
Nesse contexto foram pensadas três residências. Uma delas coordenada pelo músico e produtor nova-iorquino Rusty Santos, que ao longo dos anos, para além do percurso em nome próprio, ficou conhecido por produzir grupos de proa do rock alternativo como os Animal Collective ou por colaborar com Panda Bear, TV On The Radio ou Grizzly Bear, embora nos últimos tempos esteja mais conotado com novas músicas urbanas, pelo facto de ter trabalhado com o malogrado DJ Rashad, ícone do som footwork.

É também um conhecedor da realidade portuguesa de há dez anos a esta parte, sendo admirador das produções da editora Príncipe e tendo também já trabalhado com Branko (Buraka Som Sistema) e encontrando-se agora a produzir Dino D’Santiago.
No dia em que o fomos encontrar na Igreja de Santa Beatriz, em Chelas, onde tem pernoitado, estava entusiasmado pelos resultados que têm sido obtidos em estúdio com três rappers de Chelas (G Fema, Tunto e Tchapo) e com Nídia, da editora Príncipe. “Já fiz isto muitas vezes e o mais importante é o respeito uns pelos outros e saber ouvir mutuamente. E depois, quando se começa a fazer música, as coisas fluem”, diz, referindo que neste momento trabalha muito na área do hip-hop nos Estados Unidos e na China, em particular a variação contemporânea do trap.
“O trap é na actualidade a música dominadora globalmente e esse som misturado com crioulo resulta muito bem. Aliás, é incrível a quantidade de música singular que tenho ouvido em Portugal nos últimos anos.” Desde que a editora Príncipe começou a operar que a sua curiosidade sobre a música feita aqui disparou. “Fui aprendendo cada vez mais sobre kuduro, kizomba, afro-house ou funaná, enfim, todos esses géneros diferentes que acabam por ter pontos em comum”, afirma. Revela ao mesmo tempo que o seu interesse por música electrónica cresceu a partir de 2009, quando começou a trabalhar com DJ Rashad, Traxman ou DJ Spinna, todos eles conectados com o footwork, mais um som de rua inseparável da realidade sociocultural de malhas urbanas, neste caso de Chicago.

“O que a música tem de incrível é que quando se está em estúdio todas essas marcas identitárias socioeconómicas ou culturais se diluem. Sabemos que elas estão lá, mas quando se gera excitação e criatividade a música acaba por criar pontes.” Por exemplo, entre Chicago e Lisboa, ou entre kuduro e rap. Às tantas, em estúdio, Nídia, que lançou o álbum de estreia Nídia É Má, Nídia É Fudida, experimenta batidas kuduro, fazendo com que Rusty Santos proponha algumas alterações e que a rapper G Fema intervenha com a voz sobre a base sonora. “Quem haveria de dizer que estaria a fazer kuduro?”, ri-se ela.
À espera da sua vez para intervir está o rapper Tunto, que, apesar de nos últimos tempos estar parado (“Existem prioridades, como a família”, diz ele. “Tenho um filho para criar e já não dá para estar tanto na rua como fazia”), sempre vai dizendo que a experiência tem sido “espectacular”, falando de Rusty Santos com admiração. “É um produtor acessível, que te acolhe e está aberto a sugestões”, refere, adiantando que se sente confortável a debitar sobre batidas boom bap. “Mas todos nós gostamos de desafios, adaptamo-nos e queremos é ir aprendendo coisas novas.”
Perspectiva semelhante tem Tchapo, que está mais próximo dos mandamentos mais clássicos do hip-hop. O trap ou boom bap são derivações que não lhe dizem tanto. “Sou mais da ‘velha escola’, mas é sempre bom encarar experiências novas como esta e consigo ajustar-me, até porque o Rusty é um grande produtor, ouve-nos a cantar e adequa-se também, o que não admira, porque é de Nova Iorque e sabe da história do hip-hop.”

Quer Tunto quer Tchapo falam com entusiasmo de Chelas, evocando vários nomes que fizeram a história do rap no bairro. “Sempre houve aqui pessoal a fazer rap no seu estado mais puro, com mensagem, como sendo a voz do povo”, diz Tchapo. “Todas as outras derivações, como o gangster rap, só surgiram depois. O rap surgiu como forma de falar das coisas de uma outra forma, através da inteligência, e não apenas da agressividade e é isso que ainda hoje me interessa”, afirma.
Tunto, por sua vez fala, com entusiasmo do colectivo Bataclan, “que são uns putos aqui da zona”, diz, “que têm uma grande vibração quando se juntam”, sintoma de que, afirma, “a música aqui está sempre a renovar-se.” E para isso o Zona Não Vigiada tem também contribuído. “Só o facto de termos aqui um palco em condições, com bom som e microfones, acaba por ser excelente. Há dois anos foi um espectáculo e este ano também vai ser!”

Este sábado, logo a abrir, pelas 16h, far-se-ão ouvir os temas que foram criados por estes dias pelos intervenientes na residência, que não foram escolhidos ao acaso. Quando a Casa Conveniente veio para aqui, percebeu que a música tinha uma forte implantação na zona e quis intervir também aí. “Criámos aulas de instrução musical pela Sofia Vitória e concretizámos um projecto de recolha, percebendo que música existia aqui e quem a fazia”, revela José Miguel Vitorino. “Conhecemos as pessoas, filmámo-las, e a ideia passou a ser apoiá-las na divulgação, produção, criação da música e vídeos, acompanhando-as.”
Algumas das crianças e adolescentes, dos 8 aos 16 anos, que estão a fazer o workshop das Pega Monstro, foram seleccionadas a partir das aulas de Sofia Vitória, conta a própria. “Há miúdos que sabem tocar, porque integram a aula semanal que aqui damos, mas existem outros que vão entrar em contacto pela primeira vez com baterias, guitarras e teclados”, conta. A ideia surgiu depois de há dois anos as irmãs Pega Monstro terem causado impacto com a sua música rock directa, principalmente junto das adolescentes do bairro. “Provocaram muita curiosidade e mesmo impacto e daí surgiu o convite para este workshop.”

Os resultados serão apresentados esta terça-feira no auditório da casa dos direitos sociais, em Chelas, onde está a decorrer a residência, e no dia 22 no espaço da Casa Conveniente, integrado no evento Dias de Marvila, produzido pelo Teatro Maria Matos. Será também nessa ocasião que Rodrigo B. Camacho e Sara Rodrigues, directores do NME (New Maker Ensemble), um grupo de nova música e arte performativa sediado em Londres, apresentarão os resultados do atelier baseado na peça Exclusão-Circular, da autoria de ambos, que questiona ideias de lugar, identidade sociocultural, centralidade e marginalidade, pela via da música e coreografia. Rodrigo B. Camacho, que é também maestro e participou nessa função na última peça da Casa Conveniente, Ensaio para Uma Cartografia, que teve em cena em Abril no Teatro Dona Maria II, diz que a peça que estão a trabalhar com pessoas do bairro e de fora dele tem uma estrutura, “embora cada pessoa possa trazer um pouco dela para o interior da peça, interrogando relações de centro e periferia”.
Ambos estão habituados a trabalhar com profissionais de técnica exímia, mas aqui, não prescindindo da exigência, estão mais interessados em cuidar da dinâmica de grupo, ao nível das propostas teóricas, mas também da sua efectivação, afirma Sara Rodrigues, “ao nível da técnica vocal, de esforço, de respiração, de performatividade, de postura e da simultaneidade do canto e da dinâmica que se gera a partir daí e que não é nada fácil”.

A dupla, tal como as Pega Monstro e Rusty Santos, tem vivido por estes dias no bairro, almoçando todos em casa de Cátia, que cozinha comida cabo-verdiana. Às tantas a meio da conversa Tchapo diz que um dia gostava de ir a Nova Iorque, mas sendo o Condado o seu bairro, não lhe é fácil sair dali nos próximos tempos. É ali que tem amigos, que se sente estimado, ligado a si e ao mundo. Para ele não há lugar mais central do que aquele.

É isso, os bairros, seja a Lapa ou Chelas, não são só estatísticas, indicadores e categorizações, são fundamentalmente pessoas com histórias, emoções, imaginários e relações, umas vezes em consenso, outras em tensão, construindo todos os dias relatos e interpretações sobre o que as rodeia. Este sábado, a partir do festival Zona Não Vigiada, haverá mais histórias para contar.