Casas para a classe média em bairros sociais: fim do estigma ou engodo?

Autarquia lisboeta e associações de moradores congratulam-se por “combate à guetização” dos bairros. Perdem-se casas para os mais pobres e falta oferta intermédia, alertam especialistas.
A câmara de Lisboa sorteou na terça-feira mais 38 casas no âmbito do Programa de Renda Convencionada, destinado sobretudo à classe média que não consegue pagar os preços do mercado privado. Desta vez, a maioria dos fogos a concurso situava-se em bairros sociais de Marvila e Beato.

A câmara de Lisboa sorteou na terça-feira mais 38 casas no âmbito do Programa de Renda Convencionada, destinado sobretudo à classe média que não consegue pagar os preços do mercado privado. Desta vez, a maioria dos fogos a concurso situava-se em bairros sociais de Marvila e Beato.

Ao incluir nestes sorteios casas que foram, quase todas, construídas originalmente com o propósito de realojar pessoas que viviam em barracas e cujos habitantes pagam, em média, rendas muito inferiores às que vão pagar os futuros moradores, a autarquia diz querer “tornar cada vez mais una a malha urbana”, “procurando combater a guetização e o desenvolvimento desigual na cidade”.

A estratégia não é nova e não é consensual. Há quem lamente que, por falta de investimento público na habitação para a classe média, tenham de ser as casas destinadas aos mais carenciados a suprir essa necessidade. Há igualmente quem diga que isto é como vender gato por lebre às classes médias. E também há esperança, de quem se habitou a viver com preconceitos, de que o futuro possa mesmo ser melhor.
“Eu moro em Marvila há 43 anos e não gostaria que esta freguesia só fosse conhecida pelos bairros sociais”, comenta Manuel Saraiva, da Associação de Moradores do Bairro das Amendoeiras. Neste concurso de renda convencionada não houve fogos atribuídos neste bairro, mas Manuel conhece bem Marvila. E diz que ela ainda “sofre algum estigma”, a seu ver injustificada. “Há muita gente desempregada, uma grande percentagem de pessoas nem-nem, que não trabalham nem estudam, mas é uma freguesia de gente séria e trabalhadora”, garante.

“Tudo o que for no sentido de trazer gente nova é positivo”, afirma Saraiva, acreditando que, mesmo nos locais mais problemáticos, a presença de novos moradores, com hábitos e rendimentos diferentes, pode ser uma alavanca de mudança. “A partir dos bons exemplos, as coisas podem melhorar.”

O problema não está aí, diz Manuel Saraiva, secundado por um membro de outra associação de moradores, esta do Bairro do Condado. “O problema é que há imensas casas fechadas”, diz esta pessoa, que prefere não se identificar. “Precisamos de acordar os bairros sociais e tirar-lhes o estigma. Eles deviam era ter mais casas disponíveis”, continua. Para Manuel Saraiva, que também diz existirem “muitas casas vazias”, “a câmara tem de agilizar alguns processos para recuperar património habitacional”.
Faltam respostas intermédias
Recentemente, depois de a autarquia ter entregado as chaves de uma casa num bairro social a um vencedor do sorteio de renda convencionada, muitas pessoas foram protestar para as redes sociais. A lista de espera para uma habitação municipal com renda apoiada é extensa e, por isso, “obviamente que isto pode gerar algum tipo de conflito”, comenta Gonçalo Antunes, investigador em políticas de habitação da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova (FCSH).
Apesar de a autarquia se referir à habitação municipal como um todo, os programas de renda convencionada e de renda apoiada têm regras e destinatários diferentes. No primeiro, a câmara define uma renda para o fogo e os interessados podem candidatar-se se esse valor corresponder a entre 10% e 40% do seu rendimento mensal. Depois há um sorteio, com toda a gente em pé de igualdade, em que qualquer um pode ganhar. Na renda apoiada, os candidatos são avaliados consoante um conjunto de critérios (rendimento, agregado, etc.) e recebem uma pontuação. Quanto mais alta for, mais rapidamente recebem uma casa.

Neste último sorteio de renda convencionada, a Quinta do Ourives era o bairro com mais casas. Segundo a Gebalis, empresa que gere a habitação municipal, ali a renda média é de 60,87 euros. Os futuros moradores vão pagar pelo menos 215.
“A câmara, na prática, está a roubar casas às pessoas mais desfavorecidas. É uma política pública de segmentação da cidade”, critica Leonor Duarte, porta-voz do movimento Morar em Lisboa. “Se a classe média fica com rendas convencionadas e vai para bairros sociais, quem é que irá para o Programa de Renda Acessível?”, questiona.
“Se isto vai tirar algumas casas que deviam estar disponíveis para outras prioridades? Vai”, diz Gonçalo Antunes. Mas “a política de renda convencionada pode contribuir para que a homogeneidade social dos bairros possa ser diversificada”, argumenta.

Para o investigador, cuja tese de doutoramento se focou nas políticas públicas de habitação dos últimos 200 anos, há um problema de fundo: “O parque habitacional público é muito reduzido e foi quase todo construído para os programas de realojamento. Não existe nada intermédio entre o que foi construído para a população carenciada e a população que não pode candidatar-se a habitação social, porque tem rendimentos superiores, mas não consegue arrendar ou comprar no mercado privado.
Combater o estigma
Já não é a primeira vez que estes bairros entram na geografia do Programa de Renda Convencionada. “A estratégia tem tido resultados positivos, nos pontos onde já aconteceu, na medida em que vem contribuir para a abertura e para a maior integração dos bairros municipais na cidade, ajudando a quebrar estereótipos que ainda marcam alguns destes núcleos habitacionais”, diz a câmara. “Historicamente, a construção de Lisboa assenta numa mistura de estratos sociais, num convívio que é desejável para todos e que sempre existiu. Queremos contribuir para uma cidade de diálogo e coesão.”
“Há estudos empíricos que revelam que, apesar de as pessoas estarem próximas no bairro, não há construção de rede social”, alerta Luís Mendes, investigador do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território (IGOT), da U. Lisboa. “Quando temos uma classe média com mais rendimento, melhor capacidade de mobilidade e capital cultural, estas pessoas fazem a vida fora do bairro. O bairro é apenas o sítio onde moram”, diz ainda.
“Se a câmara tem um orçamento bastante confortável e imenso edificado devoluto, porque é que não o recupera ao serviço da população?”, pergunta este académico. Uma preocupação que é também a de Manuel Saraiva: “Tudo demora muito”, lamenta.

Desde que o Programa de Renda Convencionada foi lançado, em 2013, foram atribuídas 375 casas. Houve mais de 20 mil candidatos. Segundo a autarquia, no ano passado foram atribuídas 625 casas em todos os programas, uma subida de 45% face a 2017. Para este ano, disse Fernando Medina há dias, o objectivo é “recuperar casas mais rápido para entregar às famílias, incluindo o esforço de construir mais habitação”.