Amnistia Internacional: o ambiente na Europa é “como nos anos 1930”

Amnistia Internacional: o ambiente na Europa é “como nos anos 1930”
Relatório de 2016 da associação de defesa dos direitos humanos sublinha papel da Europa no recuo de alguns direitos, por exemplo dos refugiados.
A retórica populista e a demonização do outro está a levar a Europa a um clima de tensão que faz lembrar os anos antes da II Guerra e que tem levado a uma deterioração dos direitos humanos no mundo, denuncia a Amnistia Internacional no seu relatório anual de 2016. “A situação está a chegar a tal ponto que esta retórica divisiva, que aponta culpados em vez de apontar soluções, tem consequências”, declarou o director da secção portuguesa da Amnistia Internacional, Pedro Neto. “Há um ambiente como nos anos de 1930, que pensávamos que nunca seria possível”.

A presença de países em guerra, com conflitos ou ditaduras como autores de graves violações de direitos humanos no documento da Amnistia é esperada, mas neste relatório há muito a apontar a países em paz. O medo de perder segurança e prosperidade está a levar vários países a recuar em termos de respeito de direitos humanos. A AI avisa para um risco de efeito dominó, para o qual a Europa está a contribuir, em especial quanto aos direitos dos refugiados.

Casos na Cova da Moura e na prisão da Carregueira foram os mais marcantes para Amnistia
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“A Europa não está a ter a resposta ideal”, diz Pedro Neto, numa conversa telefónica com o PÚBLICO. “Em alguns sítios estão a construir-se muros e a prender-se refugiados, como na Hungria. Temos um caso de uma família de refugiados que estava no Chipre. O homem deixou lá a mulher e os filhos e foi à fronteira da Hungria para reencontrar os seus pais com a ideia de os levar para o Chipre. Encontrou estradas bloqueadas e postos policiais. Acabou preso e acusado por desacatos.”

A AI documentou casos de 36 países que violaram a lei internacional enviando de volta refugiados para países em que os seus direitos não estão garantidos, e vários destes países são europeus. A Europa tem enviado refugiados de volta para a Turquia, e a Turquia tem enviado refugiados de regresso aos países de onde fugiram, seja por causa da guerra, como na Síria, ou de pobreza extrema persistente como na Etiópia.

“O caminho é o contrário; não é de regresso, é de vinda”, diz Pedro Neto. “Os refugiados que estão em Itália e na Grécia devem seguir para outros países da União Europeia e não serem barrados por um muro, e terem de voltar para trás para as situações extremadas de onde fugiram com as suas famílias”, defende. “A Europa também viveu isso não há muito tempo, com milhões de pessoas a fugir da guerra – agora é a nossa vez de acolher.”

A organização de defesa de direitos humanos aponta a violação da lei internacional, mas critica ainda recuos feitos através de leis: a aprovação, por vários países, de medidas que dificultam direitos básicos aos refugiados, como o de reunificação de família.

Nós com eles, em vez de “nós contra eles”
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Vários países nórdicos (Finlândia, Suécia, Dinamarca e Noruega) aprovaram medidas para restringir pedidos de asilo e o acesso às prestações sociais associadas, uma tendência “que se observou em particular em países nórdicos que antes eram generosos”, diz o relatório. A Noruega quis mesmo assegurar que tinha “a política de asilo mais firme da Europa”.

Mais uma vez a Finlândia, Suécia e Dinamarca, assim como a Alemanha, restringiram ou adiaram a reunificação familiar de refugiados, dificultando a vida de familiares de pessoas que conseguiram asilo. “O direito à união da família é um direito básico. Mas o sistema de relocalização é tão complexo que atrasa muito e temos muitas vezes famílias divididas por países diferentes”, nota Pedro Neto. “Há um exemplo português: houve recentemente notícias de refugiados acolhidos em Portugal que já saíram do país, mas não foram explicadas as razões da saída: muitos dos que saíram fizeram-no para se juntar à família que estava noutro sítio.”

Heróis solitários
É difícil ter uma narrativa clara sobre o que aconteceu no ano passado, diz o secretário-geral da Amnistia, Salil Shetty, no prefácio do relatório. “Mas a história de 2016 foi de certo modo uma história da coragem de pessoas, resiliência, criatividade e determinação face a imensos desafios e ameaças.”

Porque “em cada região do mundo houve provas de estruturas formais de poder usadas para reprimir”, escreveu Shetty. “Mas as pessoas encontraram maneiras de contrariar e ser ouvidas”.

Houve casos trágicos, como o do assassínio da activista Berta Cáceres nas Honduras, que “simbolizou os perigos para indivíduos que enfrentam interesses poderosos estatais e empresariais”. O trabalho de Berta Cáceres para defender comunidades locais e as terras das pessoas de uma barragem a ser construída tornou-a um alvo a abater. Foi morta por homens armados dentro da sua própria casa.
Mas também de casos que resultaram. “Temos um exemplo em que nós, Portugal, estivemos tão ligados, a libertação de 17 prisioneiros de consciência em Angola”, aponta pelo seu lado Pedro Neto.

A boa notícia do ano é, assim, que “as pessoas estão a mobilizar-se e a ganhar consciência de que também nós temos de ser líderes da transformação do mundo.” Porque regra geral, nos grandes casos de desrespeito sistemático de direitos humanos os governos são o problema e a coragem dos civis o início da solução.

Salil Shetty acaba o seu prefácio com um apelo: “2017 precisa de heróis de direitos humanos”. Pedro Neto completa: “Esse será um dos maiores trabalhos da AI em 2017 – proteger e dar voz a todos os defensores dos direitos humanos que encontrarmos e que se levantarem e apelarem a uma direcção contrária.”